O processo sobre a trama golpista chegou à etapa que antecede o julgamento — o momento em que os réus apresentam ao Supremo Tribunal Federal (STF) suas alegações finais. Ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid foi o primeiro a expor seus argumentos para rebater a acusação de que teria participado ativamente da conspirata ocorrida no fim de 2022 que visava a anular as eleições e manter o ex-presidente no poder. A situação dele é curiosa. Preso durante as investigações, Cid assinou um acordo de colaboração com a Justiça no qual se comprometeu a contar o que sabia. Em troca de benefícios, forneceu à polícia detalhes de reuniões reservadas realizadas no Alvorada logo depois da vitória de Lula, identificou oficiais que participaram da trama e conferiu autenticidade a documentos que serviram de base para que a Procuradoria-Geral da República concluísse que o país esteve na iminência de uma sublevação militar. As revelações praticamente sacramentaram o futuro de Jair Bolsonaro e de outros seis acusados que serão julgados a partir de setembro. Apesar disso, a recompensa prometida ao delator corre risco de não ser consumada.
Braço direito do ex-presidente, Mauro Cid apostou no acordo de delação premiada como única saída para evitar uma provável condenação. Observador privilegiado de tudo que de mais importante se passou nas salas mais reservadas dos palácios do Planalto e da Alvorada, o tenente-coronel foi convencido de que acabaria banido do Exército e amargaria até quarenta anos de cadeia caso mantivesse a lealdade ao ex-presidente. Seu celular, apreendido ao longo das investigações, armazenava documentos e conversas comprometedoras que, isoladas, não provavam muita coisa. Sistematizadas, mostravam que Bolsonaro se articulou com um grupo de militares de alta patente numa trama que, por pouco, não descambou na maior crise institucional da história do país. Cid, porém, enfrentou um dilema. Mesmo sabendo que não havia alternativa, ele hesitava em entregar o ex-chefe. Nos vários depoimentos que prestou, sempre procurava minimizar o papel de Bolsonaro na conspirata. E mais: em conversas com amigos, reclamava de que estava sendo pressionado pelos investigadores, que supostamente tentavam manipular suas declarações para comprometer o ex-presidente.
Em junho passado, quando o processo no STF já caminhava para a reta final, VEJA revelou que Cid havia criado um perfil no Instagram, por meio do qual relatou ao advogado de um dos réus detalhes do que estava contando à polícia, além de atacar o ministro Alexandre de Moraes e insinuar que havia irregularidades na investigação. O caso provocou a abertura de um inquérito para apurar se o tenente-coronel tinha violado a cláusula de sigilo da colaboração. Na ocasião, apesar das inúmeras evidências, ele negou ser o dono da conta na rede social. Diante de todos esses fatos desabonadores, o procurador-geral Paulo Gonet pediu a suspensão de parte dos benefícios. O acordo garantia ao tenente-coronel que, independentemente do veredicto, poderia receber o perdão judicial ou cumpriria no máximo dois anos de prisão. Agora, em caso de condenação, ele poderá permanecer mais de uma década na cadeia.
Em suas alegações finais, Cid classificou o pedido do procurador como “deslealdade” e um “claro e perigoso desestímulo” para futuros delatores. “Falar a verdade contra os poderosos requer renúncia! Premiar um colaborador com o abandono após obter dele tudo o que se podia extrair não apenas ofende a Justiça, mas revela a atuação de um Judas, que pretende transfigurar o instituto da colaboração premiada em inquestionável armadilha institucional”, criticou.

Ao longo de 78 páginas de suas alegações finais, Mauro Cid disse que sua vida virou de cabeça para baixo depois que quebrou a “lealdade cega entre subordinados militares e figuras centrais do poder político” e tornou públicas as coxias do governo bolsonarista. Ele afirmou que, além da “coragem moral” de fechar uma delação em um ambiente que rejeita alcaguetes, “se colocou em posição de extrema vulnerabilidade ao colaborar espontaneamente com as autoridades judiciárias, mesmo ciente de que sua postura enfrentaria forte resistência, represálias e, de certa forma, coação por parte de seus antigos aliados, superiores e demais corréus — especialmente os ligados ao ex-presidente Jair Messias Bolsonaro”. A referência a intimidações não é à toa. Para tentar livrar-se da acusação de ter vazado criminosamente detalhes de sua delação por meio do perfil no Instagram, o militar chegou a acusar um advogado de Bolsonaro de fazer um cerco contra seus familiares em busca de informações sobre o que ele havia revelado à polícia.
Cid afirmou ainda que, a despeito do material apreendido nas operações de busca determinadas por Alexandre de Moraes, sem suas revelações como delator, a estrutura da principal acusação contra Bolsonaro — a de liderar as articulações em prol de um golpe de Estado — provavelmente não pararia de pé. Foi a partir de depoimentos que ele prestou, ressaltaram seus advogados, que a Polícia Federal enfim soube da existência de reuniões de cunho antidemocrático no Palácio da Alvorada no fim de 2022 em que o então presidente buscava convencer a cúpula das Forças Armadas a embarcar em uma ruptura institucional. O argumento, nesse caso, é uma meia-verdade. Embora a existência dos encontros no Alvorada tenha sido de fato revelada pelo delator, investigadores já haviam localizado documentos e mensagens que evidenciavam que, no apagar das luzes do antigo governo, o que não faltava eram articulações para atentar contra a democracia no país. As revelações do tenente-coronel serviram para estabelecer conexões entre vários fatos que não se encaixavam, mas, com o avanço das investigações, também ficou nítido que ele se empenhava para continuar protegendo Bolsonaro. Nas alegações finais, inclusive, Cid voltou a ressaltar que nunca imputou crime nenhum ao ex-presidente e disse acreditar que ele não assinaria nenhum documento que buscasse solapar a democracia.

O prazo para que Jair Bolsonaro e os ex-ministros Braga Netto (Casa Civil), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Anderson Torres (Justiça) e Paulo Sérgio Nogueira (Defesa), além do ex-comandante da Marinha Almir Garnier e do ex-chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem, também apresentem os argumentos finais termina no próximo dia 13. Nos últimos dias, o ministro Alexandre de Moraes deu mais uma demonstração inequívoca de que as pressões do governo americano para interferir no processo em que o ex-presidente é acusado de tentativa de golpe não vão produzir qualquer consequência prática. Primeiro, ele mandou retirar da Praça dos Três Poderes um acampamento de protesto montado pelo deputado Helio Lopes (PL-RJ) em solidariedade ao ex-capitão. O ministro também indicou que o julgamento dos réus começará no próximo dia 2 de setembro. A resposta à chantagem de Donald Trump foi dada — e exatamente como devia ser. Nada muda.
Publicado em VEJA de 1º de agosto de 2025, edição nº 2955