Malena Stariolo
Finalmente, transcorridos quase 30 anos desde que começou a ser planejado, o Observatório Vera Rubin iniciou suas operações há pouco mais de um mês, no dia 23 de junho. A promessa é que o megaempreendimento, localizado em Cerro Pachón, no Chile, inaugurará uma nova era de estudos do universo. Em particular, deve revolucionar as pesquisas sobre o Sistema Solar, a partir da descoberta de milhares de novos objetos que habitam nossa vizinhança espacial, como asteroides e cometas.
O início das operações do telescópio correspondeu às elevadas expectativas: em pouco mais de sete horas de funcionamento, foi possível produzir uma imagem que revela nuvens coloridas de gás e poeira das nebulosas de Trífida e Lagoa, localizadas a mais de 5.000 anos-luz da Terra. E, após 10 horas de operação, o observatório identificou 2.104 novos asteroides no Sistema Solar; a título de comparação, a média global anual de novos asteroides identificados antes que o novo observatório entrasse em operação era de cerca de 20.000.
Essa alta performance se deve, em parte, à LSSTCam, a câmera digital que compõe o telescópio Simonyi, do Vera Rubin. Com 3.200 megapixels, é considerada a câmera mais potente do mundo e, operando em combinação com os três espelhos que compõem a aparelhagem, se destaca por, além de cobrir uma vasta área do céu noturno, ser capaz de enxergar objetos muito distantes, cuja luz chega até nós bastante fraca.
Entretanto, para que o potencial desse supertelescópio seja aproveitado por completo, é preciso dispor de uma conexão de rede estável e eficiente, assegurando, assim, que os dados obtidos nas montanhas chilenas possam viajar até os laboratórios dos Estados Unidos, onde serão tratados e, posteriormente, divulgados. Quem atende a essa demanda é a RedNesp (Research and Education Network at São Paulo), uma rede de fibra óptica implantada e mantida pela FAPESP, que conecta dezenas de instituições de ensino e pesquisa do estado de São Paulo, tanto entre si quanto com instituições do exterior.
“Desde o começo da construção do Vera Rubin, já se sabia que haveria uma grande demanda de conectividade que permitisse a transmissão dos dados de forma rápida, eficiente e segura”, diz Ney Lemke, coordenador da Rednesp e docente do Instituto de Biociências da Unesp, campus Botucatu. “À época, o Brasil também tinha uma grande demanda por conectividade. A FAPESP, então, buscou atender a ambos os interesses e criou esse projeto com o objetivo de montar uma rede de alta velocidade para atender aos projetos acadêmicos.”
Segundo a FAPESP, desde sua criação, em 1988, quando era chamada de Rede ANSP, até 2020, já foram destinados US$ 125 milhões à Rednesp, que segue recebendo da fundação aportes de aproximadamente US$ 4 milhões por ano. O financiamento contínuo ao longo dos anos promoveu o desenvolvimento da rede e sua confiabilidade, permitindo que ela participasse de grandes projetos internacionais de colaboração em pesquisa científica, como o LHC, o Grande Colisor de Hádrons do CERN. O Vera Rubin é mais um projeto atendido pela Rednesp; porém, a magnitude desse empreendimento apresentou desafios particulares.
Um universo de informação
Um dos diferenciais do projeto do Vera Rubin é sua capacidade de realizar uma varredura completa do céu no Hemisfério Sul a cada três ou quatro noites. Ou seja, em vez de focar Em um objeto específico e de interesse, o observatório irá coletar o máximo de informações sobre todos os objetos situados na área de observação. A expectativa é que, até o final de suas operações, em 2035, o observatório tenha produzido cerca de 60 petabytes de dados de imagens (o equivalente a 15 bilhões de fotos de 12 megapixels, que hoje podem ser registradas por celulares de última geração). Estima-se que essas fotografias permitirão detectar mais de 20 bilhões de galáxias e 17 bilhões de estrelas, dando origem ao maior catálogo astronômico já produzido.
As imagens e dados produzidos no Chile serão continuamente transmitidos pela Rednesp para os centros de processamento nos Estados Unidos em até sete segundos. Segundo Lemke, um atraso de 0,2 segundo no trajeto, ou uma perda de pacotes de 0,001%, já seria o suficiente para comprometer a operação. “As redes são compostas, basicamente, por lasers que transmitem os dados. Se houver alguma flutuação no sinal ou incompatibilidade entre os equipamentos, a rede não sofre uma queda total, mas a performance e o tempo de transmissão são comprometidos. Isso já basta para causar problemas”, diz ele.
Um dos problemas que podem surgir é que, devido à quantidade massiva de dados gerados em um curto intervalo de tempo, eventuais atrasos na transmissão resultem em uma sobreposição de dados. “Pode acontecer de novos dados começarem a ser transmitidos antes que a transferência anterior tenha sido concluída”, diz Lemke. “Precisamos evitar esse tipo de situação e manter a rede estável ao longo do tempo de duração do projeto, que será de dez anos”, diz.
A título de exemplo do volume de informação que será necessário transmitir, ele cita a imagem já divulgada das nebulosas Trífida e Lagoa. A imagem possui cerca de 5 gigapixels e foi construída a partir da combinação de 678 fotografias, envolvendo aproximadamente dois trilhões de pixels de dados. Outro vídeo divulgado pelo observatório (veja abaixo) combinou mais de 1.100 imagens para revelar cerca de 10 milhões de galáxias na região do Aglomerado de Virgem, localizado a 55 milhões de anos-luz da Terra.
Monitoramento deve durar uma década
Para garantir o funcionamento adequado da rede, o Núcleo de Computação Científica da Unesp, localizado no campus Barra Funda, desenvolveu o software Kytos. A plataforma de código aberto é responsável por monitorar e informar as condições de funcionamento da rede. “Por meio dela, obtemos informações sobre os dados que saem de uma ponta até a outra, qual é a velocidade da rede e sua latência, tudo em tempo real”, diz Lemke.
Com essas informações, a equipe responsável pelo monitoramento pode tomar decisões estratégicas sobre a transferência dos dados. Em um quadro de sobrecarga da rede, por exemplo, ou em caso de produção excessiva de dados, é possível encaminhá-los por outras vias, diminuindo, assim, o tráfego no cabo principal.
Essa flexibilidade é possibilitada pelo consórcio da FAPESP com o projeto AmLight (Americas Lightpaths Express and Protect), um projeto internacional de infraestrutura de rede para conectar instituições de pesquisa, do qual participam 13 países das Américas. Graças a esse convênio, a Rednesp tem acesso a dois links internacionais intermediados por cabos subaquáticos, um instalado no oceano Atlântico e outro no oceano Pacífico. “As redes de internet consistem em cabos submarinos compostos por várias fibras ópticas, cada uma da espessura de um cabelo, e duas dessas fibras são dedicadas à nossa conexão”, diz Lemke.
O trajeto mais comum para os dados gerados no Vera Rubin segue pelo cabo do Atlântico. Caso o Kytos identifique instabilidade ou sobrecarga nessa via, as equipes envolvidas na transmissão podem optar por mandar as informações pelo cabo do Pacífico, evitando complicações e atrasos.
Lemke ressalta que a Rednesp, assim como os demais softwares desenvolvidos para atendê-la, garante maior segurança e confiabilidade em comparação às opções comerciais de conexão e internet disponíveis atualmente. Segundo ele, isso faz com que a rede seja preferida em ambientes acadêmicos.
“Nas opções comerciais, as falhas são mais toleradas. Mas, quando lidamos com um investimento de bilhões de dólares, em um projeto que demanda monitoramento de rede ao longo de dez anos, a menor das falhas pode causar problemas difíceis de contornar”, afirma.
Imagem acima: o observatório Vera Rubin em Cerro Pachón, no Chile. Crédito: RubinObs/NOIRLab/SLAC/DOE/NSF/AURA/H. Stockebrand