Eduardo Geraque
A liberação de gases do efeito estufa por atividades humanas é o principal causador das mudanças climáticas. Gases como o dióxido de carbono (CO2), o metano (CH4) ou o óxido nitroso (N2O), por exemplo, têm a capacidade de reter calor na atmosfera provocando seu aquecimento e alterando os padrões climáticos do planeta. Quantificar e entender as origens dessas emissões é, portanto, etapa fundamental para orientar o desenvolvimento de políticas públicas e de ações que busquem reduzir esses lançamentos e mitigar seus efeitos sobre o clima global. Nos últimos anos, nações, setores econômicos e organizações têm elaborado inventários para documentar o volume e o perfil de atividades produtivas responsáveis por esses lançamentos com o objetivo de minimizá-las e compensar esse impacto.
De forma geral, a quantidade de gases emitidos na atmosfera é um balanço formado pelo volume emitido das atividades subtraindo-se a carbono que é recuperado, por exemplo, por atividades naturais, como a fotossíntese das plantas. Um artigo produzido por pesquisadores da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias (FCAV) da Unesp, no câmpus de Jaboticabal, investigou o impacto da remoção de carbono no inventário de gases de efeito estufa brasileiro e apontou o papel central da Caatinga nesse processo. Segundo o estudo, em alguns anos o bioma nordestino, apesar de ocupar aproximadamente 10% do território nacional, respondeu por quase 50% de toda a captura de carbono realizada no país.
A análise conduzida pelo pesquisador Luís Miguel da Costa, ao lado do professor Newton La Scala Jr. mostra que a Caatinga supera outros biomas mais celebrados por seus serviços ambientais, como a Amazônia e o Cerrado – ao menos no período entre 2015 e 2022, intervalo temporal investigado pela equipe de pesquisa. O trabalho foi publicado na revista Ciência do ambiente total.
A pesquisa comparou dados de duas das principais fontes de informação sobre emissões e remoções de gases de efeito estufa disponíveis para o Brasil hoje: o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG), coordenado por instituições brasileiras, como o Observatório do Clima, e Ó traço climáticoconsórcio internacional que utiliza imagens de satélite e inteligência artificial para monitorar, em tempo quase real, as emissões em todo o planeta. Além de se debruçar sobre os biomas brasileiros, o estudo também contemplou a análise de dados de satélite sobre precipitação e fluorescência da clorofila (SIF, na sigla em inglês). A fluorescência da clorofila é um indicador direto da atividade fotossintética da vegetação, ou seja, quanto mais intenso é o SIF, maior é o sequestro de carbono atmosférico pelas plantas.
Segundo os autores do estudo, o que ocorre na Caatinga é que o aumento da disponibilidade hídrica em épocas de chuvas abundantes se reflete em uma resposta bastante positiva do processo fotossintético. “Havíamos feito um estudo específico sobre o SFI para todos os seis biomas brasileiros antes. Na Amazônia, por exemplo, constatamos que existe praticamente um platô, um nível máximo. Porém, quando analisamos as atividades fotossíntéticas em relação à precipitação, na Caatinga, observamos um crescimento muito grande do SIF naqueles anos em que a chuva supera os padrões do bioma”, explica o pesquisador.
Nos dados apresentados agora, diz Scala Jr., a Amazônia permanece como um imenso reservatório de carbono, cuja preservação é fundamental. Já a Caatinga chamou a atenção dos pesquisadores ao evidenciar uma expressiva capacidade de capturar carbono, relacionada à capacidade de sua vegetação para responder de forma positiva a determinados fatores ambientais, como a precipitação. “São características diferentes, mas igualmente importantes”, afirma o docente do câmpus de Jaboticabal.
A rebrota rápida das plantas é um atributo peculiar que faz com que o bioma funcione como um sumidouro expressivo de carbono, mesmo em períodos relativamente curtos de melhoria climática. A vegetação seca, que predomina em grande parte do ano, entra em um ciclo de crescimento acelerado assim que as chuvas chegam, sequestrando grandes quantidades de CO₂ da atmosfera, cerca de 40% das remoções do país, mostram estudos já realizados na região.
Desmatamento é o vilão das emissões brasileiras
Como explicam os autores do artigo, as emissões brasileiras estão totalmente associadas às mudanças no uso e na ocupação da terra. A agricultura surge como o segundo setor que mais emite, seguida pelo setor de Energia. Segundo os dados oficiais do próprio SEEG, as emissões brutas brasileiras de GEE em 2023 totalizaram aproximadamente 2,3 bilhões de toneladas de CO₂ equivalente (ou 2,3 GtCO₂e), o que representa uma redução de cerca de 12% em relação ao ano anterior, quando o total foi de 2,6 GtCO₂e (ver imagem abaixo). O termo “equivalente”, neste caso, é usado quando o cálculo se refere a todos os gases que causam o efeito estufa, em termos equivalentes ao CO₂.
Recentemente, dados oficiais divulgados pelo sistema DETERferramenta do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) que monitora alterações na cobertura florestal do país, indicaram uma redução de 33% no desmatamento no primeiro semestre de 2023, em comparação com 2022, e um aumento de 21% no Cerrado no mesmo período. A maior parte do desmatamento no bioma ocorre no arco do desmatamento, próximo à Amazônia, e também na região chamada Matopiba (porção norte do bioma que abrange os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
As emissões líquidas de uso da terra e florestas, ou seja, o balanço do desmatamento, chegaram a registrar cerca de 1,8 GtCO₂e na década de 1990. No entanto, devido ao fortalecimento da fiscalização ambiental, esse balanço de emissões caíu para aproximadamente 0,2 GtCO₂e em 2012. Após aquele ano, as emissões voltaram a subir, colocando o Brasil, na melhor das hipóteses, como o último entre os dez maiores emissores mundiais nessa rubrica. As queimadas e derrubadas crescentes em áreas tanto da Amazônia quanto do Cerrado têm ajudado a turbinar esses números.
Comparação entre inventários aponta diferença de até 1 GtCO₂e
A comparação feita pelo grupo de Jaboticabal entre os dois inventários, o SEEG e o Climate TRACE, evidenciou diferenças significativas nas estimativas de remoção de carbono no setor de uso da terra e florestas brasileiros. Em alguns anos, a divergência chega a 1 bilhão de toneladas de CO₂ equivalente, o que representa aproximadamente 44% de toda a emissão nacional de 2023. “O Climate TRACE consegue enxergar as variações climáticas sobre a vegetação com mais nitidez. Porém, os dois são importantes, a depender das respostas que se pretende obter”, explica Costa.
Diferenças metodológicas e o perfil dos dados usados por cada uma das ferramentas ajudam a explicar a diferença nos números. O pesquisador esclarece que enquanto o Climate TRACE utiliza algoritmos de inteligência artificial e dados de sensoriamento remoto na composição de seus cálculos, o SEEG considera informações como o tipo de uso do solo, a extensão das áreas florestadas e dados de desmatamento. Contudo, o inventário brasileiro não incorpora dinamicamente os efeitos diretos de variações climáticas sobre a vegetação. A metodologia do TRACE é baseada também nos fatores de emissão definidos pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), órgão da ONU que divulga relatórios periódicos sobre o estado das mudanças climáticas no planeta e consolida a pesquisa mundial sobre o tema.
Essa diferença metodológica explica, segundo os pesquisadores, o fato de o sistema internacional ter identificado aumentos expressivos na remoção de carbono em anos de maior precipitação, como ocorreu na Caatinga entre 2021 e 2022. No período, os dados de SIF corroboram o aumento significativo da atividade fotossintética no semiárido, o que se refletiu no salto das estimativas de remoção de carbono na base internacional. O SEEG, por sua vez, apresenta estimativas mais estáveis ao longo dos anos, por não reagir diretamente a essa variabilidade climática. “A diferença importante é que no caso do Climate Trace, quando cai a chuva sobre um determinado quadrante florestal estático, a biomassa neste espaço aumenta, e ele possui sensibilidade suficiente para captar esse aumento. Já o SEEG captura atividades importantes da agricultura, como a calagem, uma estratégia de correção do solo praticada pelos produtores rurais que é uma fonte importante de emissão”, explica La Scala Jr. (Veja o gráfico)

A informação, registrada pelo Climate Trace, de que a Caatinga foi responsável por 48% de toda a remoção bruta de carbono registrada no Brasil em 2022 evidencia uma contribuição surpreendente para um bioma que, historicamente, recebe menos investimentos em conservação e monitoramento. É também uma mudança de paradigma em relação à percepção comum sobre a Caatinga, muitas vezes vista como uma região pobre em biodiversidade e com baixa capacidade de prestar serviços ecossistêmicos.
Metodologias diferentes, mas ambas necessárias
A comparação entre o SEEG e o Climate TRACE também traz à tona a importância de avançar na integração de metodologias. Cada sistema possui pontos fortes: o SEEG é reconhecido por sua transparência, rastreabilidade dos dados e alinhamento com os padrões internacionais de relatórios climáticos. Já o Climate TRACE se destaca pelo registro mais dinâmico e responsivo do comportamento da vegetação.
Apesar das abordagens distintas, os dois sistemas mostram convergência nos padrões gerais de emissões em algumas regiões, como a Amazônia. No entanto, em outras áreas — como a Caatinga — o Climate TRACE detecta remoções líquidas significativas de carbono, que não aparecem com a mesma clareza no SEEG. Essas divergências ressaltam a necessidade de harmonização entre metodologias e reforçam o valor de estudos complementares como o dos pesquisadores da Unesp, com múltiplas fontes de dados.
Por mais que todo o bioma brasileiro tenha seu peso na remoção de carbono — inclusive a tão combalida Mata Atlântica — os dados não deixam dúvidas sobre a importância estratégica da Caatinga como um sumidouro de carbono no contexto brasileiro. Para os pesquisadores da Unesp, em Jaboticabal, esses resultados reforçam a urgência de políticas públicas voltadas para a conservação e recuperação da vegetação nativa na Caatinga. Tais ações podem ampliar significativamente a contribuição brasileira para a remoção de gases de efeito estufa da atmosfera, ao mesmo tempo em que promovem o desenvolvimento sustentável de comunidades locais em regiões semiáridas. “Em termos de políticas públicas, é importante desenvolver maneiras de levar a água para a região até pensando em termos de sequestro de carbono”, afirma Newton La Scala Jr.
Os dados obtidos, argumentam os cientistas, abrem caminho para novas investigações sobre os mecanismos de sequestro de carbono em ambientes semiáridos e sua resposta às mudanças climáticas. “A continuidade e o aperfeiçoamento do monitoramento, com integração entre diferentes sistemas, será essencial para refinar as estimativas e orientar ações eficazes de mitigação”, defendem os autores do estudo.
Na imagem acima: registro de uma paisagem presente na Caatinga (Crédito: Depositphoto)