UM proposta de vetar investigações contra parlamentares sem aval do Congresso e alterar a regra do Fórum Especial por prerrogativa de função não afetaria o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (Pl) na ação da trama golpista, segundo especialistas.
A iniciativa é aventada por congressistas após acordo para acabar com o motim bolsonarista que tomou o plenário da Câmara dos Deputados por cerca de 30 horas nesta semana em protesto contra a prisão domiciliar de Bolsonaro.
Advogados e professores de direito ouvidos pela Folha concluem que, embora a discussão possa ser legítima, a medida não teria efeito no caso, seja pelo estágio processual, seja porque a competência do STF (Supremo Tribunal Federal) independe do foro.
Pela regra atual, cabe ao Supremo processar infrações penais comuns de presidentes, vices, congressistas, ministros do tribunal e procuradores-gerais da República, além de crimes comuns e de responsabilidade de outros agentes.
Deputados e senadores trabalham pela elaboração de um texto que permita ao Congresso blindá-los de inquéritos criminais. A ideia é proibir investigações contra parlamentares enquanto não houver aval prévio do Legislativo.
Congressistas ainda visam reformar o instituto do foro especial de modo a fixar três graus de jurisdição, começando nos tribunais regionais federais (TRFs), com possibilidade de recursos ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) e ao próprio STF.
Para Miguel Godoy, advogado e professor de direito constitucional da UnB (Universidade de Brasília) e UFPR (Universidade Federal do Paraná), a proposta seria inconstitucional por violar o princípio republicano, ao criar uma condição privilegiada e desigual para congressistas sem justificativa legítima.
Para ele, o mais adequado seria manter no STF o foro para presidentes de Poderes (presidente e vice-presidente da República e presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo), enquanto os demais seriam julgados pela Justiça comum.
Ainda assim, dificilmente uma proposta aprovada nesses termos teria efeitos sobre o processo da trama golpista no qual o ex-presidente Bolsonaro é réu, já que a fase de instrução terminou e o caso já está em alegações finais, afirma ele.
A proposta de autorização legislativa para investigações, por sua vez, seria completamente ultrapassada, antirrepublicana e profundamente desigual, diz. “Viola a isonomia entre cidadãos e ameaça a credibilidade das instituições políticas.”
“Insistir em privilégios corporativos como esse significa não apenas retroceder em termos institucionais, mas também reforçar a ideia de que parlamentares se situam acima da lei. Isso é incompatível com os fundamentos do Estado de Direito.”
O professor de direito do Insper Luiz Fernando Esteves concorda que a autorização para investigações seria incompatível com a Constituiçãoporque poderia inviabilizar apurações e impedir a responsabilização de deputados e senadores.
Ele lembra que a Constituição de 1988 exigia aval das Casas para abertura de processos até 2001, modelo que considera válido juridicamente, mas ainda negativo do ponto de vista prático por dificultar a punição de crimes.
Sobre a transferência do foro do STF para a Justiça Federal, Esteves avalia que a mudança é constitucional, mas pode gerar problemas práticos, como magistrados decretando medidas cautelares contra parlamentares.
Além disso, Esteves vê um indicativo de inconstitucionalidade na hipótese de incluírem um dispositivo no texto para permitir a aplicação da nova regra no processo do ex-presidente. “Há um argumento muito plausível no sentido de que essa disposição violaria a separação de Poderes.”
O criminalista Alberto Zacharias Toron, professor de processo penal da Faap, diz que a proposta de mudança do foro é juridicamente válida e democrática, mas movida por interesse político: escapar de um Supremo mais rigoroso.
“As ordinary people (pessoas comuns) são julgadas em primeira instância, e os nobres não. Por que os parlamentares não? Há uma ideia, a partir de um pensamento puramente democrático, igualitário, de que todos deveriam ser julgados no mesmo foro.”
“Isso é perfeitamente possível de ser feito por meio de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição). A grande questão no fundo não é jurídica, é política. Política no sentido de que estão fazendo isso para se livrar de um Supremo Tribunal Federal mais punitivo.”
O advogado, por outro lado, considera um equívoco a ideia de que todos os casos iriam para os tribunais regionais federais, destacando que a competência para processar e julgar depende do tipo de crime, não do cargo da pessoa.
No caso do ex-presidente Bolsonaro, avalia que eventual PEC não alteraria sua situação, porque ele é julgado no STF por “conexão” com outros inquéritos, critério que considera indevido e violador do devido processo legal.
Ele também classifica como retrocesso a proposta de exigir autorização prévia do Congresso para investigações contra parlamentares por entender que geraria impunidade. “Isso que tem que ser dito com todas as letras.”