Adeus a Vera Jarach: Mãe da Praça de Maio que desafiou o esquecimento duas vezes

Adeus a Vera Jarach: Mãe da Praça de Maio que desafiou o esquecimento duas vezes

Noticias Gerais

Após uma vida inteira dedicada à militância, aos 97 anos faleceu Vera Vigevani de Jarach, mãe de Franca Jarach, desaparecida pela ditadura na Argentina, em 1976, e uma das vozes mais emblemáticas da Linha Fundadora das Mães da Praça de Maio.

“As feridas, esse tipo de ferida, nunca se fecham. É preciso uma decisão, uma energia dedicada a evitar que essas histórias se repitam”, refletia, em sua voz suave e pausada, Vera Vigevani de Jarach, em uma longa entrevista por ocasião dos 44 anos da fundação do movimento das Mães da Praça de Maio.

Ela destacava a “responsabilidade” que sentia, junto com suas companheiras — por conta da idade — de deixar um legado significativo para as novas gerações. “É um mundo que preocupa demais por tudo o que vem acontecendo”, dizia então, aos quase 95 anos ainda cheios de vitalidade. “E por isso, mais do que falar do passado, eu prefiro falar, sobretudo, do presente e do futuro.”

Essa “decisão” de que falava Vera não podia curar a dor, mas teve a força de transformá-la em luta por um futuro mais justo: ser o testemunho de um legado pela Memória, Verdade e Justiça.

“Querida Vera, companheira inteligente, culta, tantas vezes alegre e em silêncio em outras, porque no teu coração girava a pergunta que nunca deveria ter existido: ‘por quê?’. Irmã Vera, você é parte de nós e estará em cada passo nosso e daqueles que virão depois. O sorriso de Franca seguirá sendo a bandeira de inúmeros jovens. Te queremos.”

Com essas palavras, a Linha Fundadora das Mães da Praça de Maio, grupo que se dedica exclusivamente à recuperação dos restos mortais das vítimas da ditadura argentina, em comunicado assinado por sua presidenta, Taty Almeida, se despediram de Vera Jarach.

Ao mesmo tempo, dirigentes políticos de destaque, como a ex-presidenta Cristina Fernández de Kirchner, compartilharam uma foto ao lado dela e ressaltaram. “Nunca deixou de lutar nem de sorrir: um exemplo de resiliência e memória. Vamos sentir saudades.”

Uma ponte entre dois genocídios

Nascida em 5 de março de 1928, no norte da Itália, Vera tinha apenas 11 anos quando ela e sua família foram obrigadas a fugir do fascismo europeu, embarcando no transatlântico Augustus rumo à Argentina. “Quando cheguei, terminou a minha infância”, recordaria anos mais tarde.

Sem um túmulo para chorar ou levar flores, seu avô havia sido assassinado nos campos de concentração de Auschwitz. As leis raciais impostas pelo regime fascista de Benito Mussolini obrigaram sua família judia a escapar do antissemitismo que se espalhava pela Europa.

Foi nas turbulentas ruas de Buenos Aires que Vera e sua família reconstruíram a vida. Formou-se jornalista e construiu uma extensa carreira de mais de quarenta anos na agência de notícias italiana ANSA. Ainda muito jovem, conheceu Jorge Jarach, engenheiro italiano com quem se casou. Em 19 de dezembro de 1957, nasceu sua única filha: Franca Jarach.

Franca cresceu como uma jovem brilhante e comprometida com as causas sociais. Para cursar o ensino médio, a família a matriculou no Colégio Nacional de Buenos Aires (CNBA), instituição de prestígio em que o pai de Vera sonhava estudar, mas que em sua época era exclusiva para meninos.

No Nacional de Buenos Aires, Franca destacou-se como excelente estudante, chegando a ser porta-bandeira. Foi nesses corredores, em meio à turbulenta década de 1970, que iniciou sua militância, envolvendo-se nos debates políticos, no compromisso social e no sonho de uma geração que buscava construir uma revolução. Foi então que se engajou na União de Estudantes Secundários (UES).

Por causa de sua atividade política, Franca foi expulsa do colégio junto com outros estudantes. Concluiu os estudos em outro instituição e, depois de formada, passou a atuar junto aos trabalhadores gráficos, vinculando-se à Juventude de Trabalhadores Peronistas (JTP), uma das organizações de massa ligadas aos Montoneros.

Em 25 de junho de 1976, no café Exedra, no centro de Buenos Aires, um grupo de tarefas da ditadura sequestrou Franca, que desapareceu aos 18 anos junto a outros cinco militantes gráficos.

“Ela ligou para o namorado dizendo que havia perdido a bolsa e os documentos e que iria tentar encontrá-los. Essa foi a última coisa que se soube antes do sequestro”, relatava Vera.

Dias depois, a família recebeu uma ligação da própria Franca, dizendo estar bem e detida na Superintendência de Segurança Federal. Era uma farsa do aparato repressivo. A família a procurava desesperadamente em delegacias e tribunais, agarrando-se a qualquer pista que desse esperança de reencontrá-la.

Anos mais tarde, descobriu-se que Franca havia sido levada ao centro clandestino de detenção da Escola de Mecânica da Armada (Esma), onde a ditadura praticava de forma sistemática a detenção ilegal, a tortura e o extermínio.

Testemunhos de sobreviventes confirmaram que Franca foi vítima dos chamados “voos da morte”, método de extermínio no qual pessoas eram dopadas, despidas e jogadas vivas ao mar a partir de aviões militares.

O pai de Franca, Jorge, faleceu sem saber o que havia acontecido com sua filha.

“Soube que ela durou muito pouco nesse lugar (a Esma), menos de um mês”, explicava Vera, para quem a reconstrução desses fatos trouxe um breve alívio em meio ao horror. “A incerteza, o não saber, é o pior”, dizia.

Um lugar chamado memória

O desaparecimento de Franca transformou para sempre a vida de Vera. Em 1977, ela se uniu ao grupo de mães e familiares que buscavam seus filhos — as “loucas da Praça de Maio”, como eram chamadas com desdém pela imprensa e pelo regime ditatorial.

Além de sua militância nas Mães da Praça de Maio, Vera participou da Fundação Memória Histórica e Social Argentina e integrou a Memória Aberta. Também foi uma das principais impulsionadoras da criação do Parque da Memória, o monumento às margens do Rio da Prata que homenageia, em pedra, as vítimas do terrorismo de Estado e simboliza a luta contra o esquecimento. Um lugar para levar flores e chorar os mortos.

Até seus últimos dias, Vera integrou o conselho diretor do Espaço Memória e Direitos Humanos, localizado no terreno da antiga Esma: o mesmo lugar em que a ditadura semeou medo e morte, mas onde os organismos de direitos humanos, com sua luta, semearam vida e memória.

Conteúdo original

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *