Na volta do recesso do Tribunal Supremo Federalnão houve apenas uma cerimônia formal. Houve um alerta. Um chamado. E, talvez, um grito.
Luís Roberto Barrosopresidente da Corte, fez mais do que abrir o semestre. Fez história. Relembrou, com precisão dolorosa, que desde os primeiros passos da República, o Brasil convive com tentativas de ruptura da legalidade — de 1891 a 1964, passando por Jacareacanga, Aragarças, o AI-5 e os anos de chumbo.
Citou perseguições a ministros do STF, cassações, aumento arbitrário do número de cadeiras para aparelhamento da corte e até o impedimento à posse de vice-presidentes eleitos. Tudo com um objetivo: calar a Justiça, silenciar a Constituição, dobrar as instituições.
Mas dessa vez, o Supremo falou. E falou alto.
Barroso lembrou que ele — e muitos de nós — viveu a ditadura. Não como conceito, mas como experiência. “Conhecemos jornalistas censurados, professores exilados, músicos silenciados. Conhecemos gente que foi assassinada em quartel. Conhecemos uma jornalista presa aos (19) anos, grávida, trancada num quarto escuro com uma cobra.” Essa jornalista é minha mãe, Miriam Leitão.
O história foi citada no plenário do STF. Não somente em homenagem pessoal, mas como símbolo da memória e da resistência. O ministro mencionou diretamente a tortura sofrida por minha mãe grávida — a mesma que escrevia peças de teatro, panfletava, recitava Castro Alves, e por isso foi trancada às escuras com uma jiboia num quartel do Exército brasileiro.
Ela tinha 19 anos. Estava grávida do meu irmão Vladimir. Hoje, minha filha Mariana tem exatamente essa idade. E foi esse o pensamento que me atravessou quando ouvi a fala. Ao vivo. Da Flip. Me emocionei.
Mas, como eu mesmo disse na transmissão dos Três Poderes: mais importante do que a dor da minha família é a dor coletiva. E é por isso que essa sessão precisa ser registrada.
Gilmar Mendes, decano da Corte, não mediu palavras. Disse que o STF é alvo de sabotagem orquestrada por quem não aceita o resultado das urnas e, por isso, fomenta a instabilidade, a mentira e o entreguismo político. Referiu-se diretamente a parlamentares foragidos que, dos Estados Unidos, tentam enfraquecer o Judiciário brasileiro com apoio externo. Chamou de lesa-pátria. E é.
Mas foi Moraes quem trouxe à luz a engrenagem oculta. Em discurso histórico, afirmou que há uma organização criminosa internacionalizada, operando de forma covarde e traiçoeira, que tenta coagir o STF por meio de pressão econômica. Disse com todas as letras que essa articulação levou à imposição de tarifas internacionais contra o Brasil — o tarifaço de Trump — como forma de criar instabilidade e tentar favorecer os réus do 8 de janeiro.
Mencionou, ainda, ameaças a ministros, a familiares de ministros, ao Congresso Nacional. Tudo com o objetivo de forçar uma anistia inconstitucional e enterrar os processos que apuram a tentativa de golpe de Estado.
“A soberania nacional não será vilipendiada, negociada ou extorquida”, afirmou Moraes. Ele não estava sozinho.
O que vimos ali foi um momento de rara convergência institucional, jurídica e simbólica. O presidente Barroso traçou a linha do tempo dos golpes; o decano Gilmar apontou o dedo para os autores intelectuais da sabotagem institucional; o relator Moraes escancarou o modus operandi golpista — de 1964 a 2023, dos quartéis às hashtags, da tortura à chantagem econômica.
Tudo isso foi dito. Em plenário. Com os nomes certos, os crimes certos, os fatos certos. E com a coragem de que o Brasil precisa.
O Supremo Tribunal Federal, ali, não apenas voltou do recesso. Reafirmou seu papel como última trincheira da democracia brasileira. E ao fazer isso, usou a memória como instrumento de resistência.
O país vive hoje sob ataque de uma retórica que tenta reescrever a história. Que diz que não houve golpe. Que diz que a ditadura não foi tão ruim assim. Que Bolsonaro é perseguido político. Que Alexandre é autoritário. Que o STF está aparelhado. Que as Forças Armadas foram injustiçadas. Que tudo é invenção. E que a verdade tem dono. Não tem.
A verdade tem sangue. Tem nome. Tem corpo jogado no mar. Tem jiboia em cela escura. Tem golpe frustrado. Tem vídeo, áudio, confissão. Tem tentativa de atentado no aeroporto, de explosão no Supremo, de invasão aos Três Poderes. Tem hashtag de convocação, canal monetizado, deputado foragido e plataforma estrangeira lavando as mãos.
Tem tudo. Só não tem mais espaço para silêncio.
No próximo dia 8 de agosto, minha mãe toma posse na Academia Brasileira de Letras. Ela sobreviveu. O Brasil, ainda não. Mas talvez esteja começando a reagir.
Democracia não é perdão. É memória. Não é conciliação. É justiça. Não é paz dos cemitérios. É verdade histórica.
Os fantasmas de ontem ainda rondam o Brasil. Mas há quem os encare de frente. No dia 1º de agosto de 2025, o Supremo Tribunal Federal fez exatamente isso.