Ou financiador William Browder é fundador e CEO da Hermitage Capital Management, maior investidora estrangeira na Rússia até 2005. Foi ele quem pressionou o Congresso americano pela criação da chamada Lei Magnitskyagora aplicada por Donald Trump contra Alexandre de Moraes. A norma recebeu essa alcunha em homenagem a Sergei Magnitsky, advogado de Browder que morreu sob custódia russa depois de denunciar um esquema de fraude fiscal do governo de Vladimir Putin. Na entrevista exclusiva a VEJA, ele revela decepção com o uso político de sua iniciativa.
Como vê a decisão de Donald Trump de sancionar Alexandre de Moraes com a lei Magnitsky? O papel principal é punir grandes violadores de direitos humanos e pessoas culpadas por promover a plutocracia e a corrupção e que, apesar de cometer esses crimes, não são processadas em seus países de origem. Assim sendo, não cabe perseguir juízes de um outro país, que não torturaram ou mataram ninguém e que não estão envolvidos em corrupção de larga escala. Alexandre de Moraes não é um violador de direitos humanos, muito menos um cleptocrata.
Em sua opinião, qual seria a resposta adequada de Moraes e do governo brasileiro? Eles devem recorrer às cortes americanas para que o ministro seja excluído da lei. Minha esperança é que, no futuro, haja uma revisão para incluir uma emenda que diga claramente que ela não pode ser usada para esses fins.
Como o senhor avalia esse ataque contra Moraes, no contexto do processo contra Bolsonaro? Não acho que um país não deve se envolver nos assuntos domésticos de outra nação nos termos de seu processo judicial, se o estado democrátido de direito estiver sendo respeitado. O Brasil não é a Rússia, onde juízes autorizam a tortura de pessoas.
Esse uso caracteriza uma distorção da lei? Eu diria que se trata de um abuso. Como a pessoa responsável por criar essa legislação, jamais poderia imaginar que ela seria usada por motivações políticas.
O senhor tem acompanhado o processo contra Jair Bolsonaro? Tenho acompanhado de longe. Baseado no que vi ele fazendo, creio que merece essas acusações, tem de ser processado e espero que seja julgado. Agora, ele está usando a arma de Trump.
Quais são as consequências disso? A lei é uma peça legislativa muito boa, que deu esperança para milhões de pessoas que lutam contra ditadores e contra líderes autoritários ao redor do mundo. Se o governo americano passa a distorcê-la, só resta esperar que isso não abale sua credibilidade.
O senhor enxerga interferência das Big Techs nessa discussão, principalmente diante do argumento de que os EUA estão defendendo a liberdade de expressão? As plataformas digitais podem ser usadas para estimular apoio a todo o tipo de ideia maluca. Com postagens anônimas, pelas quais ninguém se responsabiliza, as redes são capazes fazer campanhas que não têm qualquer relação com a opinião pública e criar a impressão de que existe um apoio popular maciço a uma ideia absurda.
Como o senhor convenceu o presidente Obama a ratificar a lei? Obama chegou à presidência em 2008. Sergei Magnitsky foi assassinado um ano depois e, em 2010, fui ao Capitólio para tentar costurar uma lei que pudesse punir os assassinos dele. O então presidente não estava nem um pouco interessado na lei e agia de forma muito parecida ao governo Trump, no sentido de restabelecer uma relação com a Rússia, que estava muito desgastada. Obama adotou a política de varrer para debaixo do tapete qualquer incidente que pudesse frustrar sua reaproximação com Putin.
E como foi recebido no Congresso americano? Eu contei a história do que tinha ocorrido com meu advogado russo, tanto a republicanos como para democratas. De repente, meus dois maiores aliados eram o republicano John McCain e o democrata Benjamin Cardin, os dois de campos ideológicos opostos. Ambos concordaram que violadores de direitos humanos, torturadores e assassinos não deveriam ser autorizados a ir aos EUA ou usar o sistema bancário americano. Lentamente, mas com muita consistência, começamos a construir uma coalizão de senadores de ambos os partidos. Ao final, a lei foi aprovada com 92 votos à favor e quatro contra.
Não houve resistência? Muita. Em todas as etapas, Obama tentou minar a iniciativa. Ele chegou a prometer ao ex-presidente e ex-primeiro ministro russo, Dmitry Medvedev, que a lei não seria aprovada. O governo usou John Kerry, que naquele momento era o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, para tentar bloquear o andamento no Congresso. Mas, diante do resultado avassalador da votação, Obama não pôde fazer nada e acabou sancionando a nova legislação, em 2012
Quais foram as condições impostas por senadores e deputados para a aprovação? Todos queriam que houvesse uma lista muita clara de critérios para determinar quem poderia ser alvo de uma sanção. É um sarrafo bem elevado para determinar os alvos de uma medida tão drástica.
O senhor não considera que a lei é uma ingerência em assuntos domésticos de um outro país? Não. Em teoria, ela deveria ser usada apenas quando as soluções domésticas são impossíveis de serem aplicadas.
Vendo como a lei pode ser usada hoje, o senhor teria feito algo diferente na sua elaboração? A lei não viola o Estado de Direito, já que contém mecanismos para barrar esse tipo de aplicação. Quem foi injustamente sancionado pode entrar com recurso nos tribunais. Nunca ninguém fez isso, pois a lei foi sempre usada de forma muito moderada. Minha grande frustração é que ela não tenha sido mais aplicada. Existem muitos violadores de direitos humanos que jamais sofreram punições.
Como foi desafiar Putin? Eu investi na bolsa de valores da Rússia e nas maiores companhias da Rússia e descobri que muitas dessas empresas eram administradas como cofres particulares de oligarcas e membros do governo. Comecei a pesquisar como eles operacionalizavam o roubo e compartilhei meus estudos com o Financial Times, Wall Street Journal e The New York Times. Como você pode imaginar, o governo russo não gostou muito disso. Assim, em novembro de 2005 eu fui expulso do país, declarado como uma ameaça à segurança nacional. Dois anos depois, a polícia fez uma operação nos meus escritórios em Moscou. Confiscaram todos nossos documentos, que foram usados, numa fraude complexa, para roubar 230 milhões de dólares em impostos que pagávamos ao tesouro. Foi nesse momento que eu contratei um jovem advogado, Sergei Magnitsky, para investigar o que estava ocorrendo. Ele descobriu a fraude e testemunhou contra os funcionários públicos envolvidos no esquema e, em seguida, foi preso pelas mesmas pessoas que expôs.
O que se sabe sobre a morte de Magnitsky? Ele foi torturado por 358 dias e foi morto em 16 de novembro de 2009, aos 37 anos.
Como o senhor recebeu a notícia? Soube na manhã seguinte. Foi a notícia mais chocante e que mais mudou minha vida. Ele havia sido morto por minha causa. Quando eu finalmente consegui voltar a pensar de forma coerente, fiz a promessa de que iria colocar de lado todas minhas atividades comerciais e gastar meu tempo, energia e recursos para ir atrás das pessoas que o assassinaram. Era para garantir que eles enfrentassem a Justiça. Pelos últimos 16 anos, me dediquei a isso.
O senhor mantém contato com a família Magnitsky? Sim, eu os apoio e os trouxe para fora da Rússia. O filho de Sergei acaba de se formar na faculdade.
O que esse episódio diz sobre Putin? Muitos acham que Putin é uma espécie de nacionalista, um patriota que cuida de seu país, mas é o líder de uma organização criminosa. Numa situação em que você tinha um jovem advogado que era um verdadeiro patriota e que trouxe à baila um crime financeiro que foi cometido contra o povo russo, o presidente permitiu que essas pessoas o perseguissem e o matassem. Putin se envolveu pessoalmente para acobertar o crime.
As sanções e tarifas que Trump está anunciando contra Rússia podem, em sua opinião, intimidar Putin ou ter algum efeito na guerra da Ucrânia? É tudo muito frustrante. Por anos, o mundo e o Ocidente não quiseram ofender Putin. Ele fez muita coisa terrível e ninguém agiu. Portanto, estava convencido de que poderia invadir a Ucrânia e que não haveria consequências.Se tivéssemos usado essas sanções de forma mais agressiva, mais cedo, talvez ele nunca tivesse iniciado a guerra. Mas, hoje, existe apenas uma sanção que poderia ser eficiente: limitar sua capacidade de vender petróleo. Só assim, não terá dinheiro e não conseguirá financiar suas tropas.
O seu avô foi o secretário-geral do Partido Comunista dos Estados Unidos, nos anos 1930. O que ocorreu para o senhor ter optado por seguir um caminho tão diferente? Foi a rebelião de minha adolescência. Meu avô era o maior comunista dos EUA e eu me tornei um capitalista. Entrei na faculdade de Negócios da Universidade de Stanford e me formei em 1989, quando o muro de Berlim entrou em colapso. E eu pensei: se meu avô foi o maior comunista dos EUA, eu serei o maior o capitalista do Leste Europeu.
E como isso afetou sua relação com a família? Meu avô morreu quando eu tinha nove anos de idade. Meu pai, que era um professor de matemática, desdenhava o que eu fazia na vida. Em 2015, eu escrevi meu primeiro livro, “Alerta Vermelho”, que narra como me tornei inimigo número um de Putin, o que mudou a opinião dele sobre mim. No seu leito de morte, a única coisa que ele queria era ouvir era o audiolivro que contava essa história.
Sendo um capitalista, como o senhor vê as medidas protecionistas adotadas pelo governo Trump? É difícil prever onde estamos hoje, pois o que ocorre em Washington ignora os fundamentos econômicos. Mas isso não é capitalismo. É apenas mercantilismo. O capitalismo é um sistema muito imperfeito, mas é melhor que o comunismo. Ele exige instituições e regulações adequadas para funcionar. Vi o exemplo mais negativo do capitalismo na Rússia, onde não existia estado de direito e nem instituições independentes. Isso abriu o caminho para um Estado mafioso.