Foram meses à espera do melhor momento para viabilizar um dos mais infelizes projetos legislativos dos últimos tempos. Na semana passada, a Câmara aprovou a chamada PEC da Blindagem, uma emenda constitucional que dava ao Congresso a prerrogativa de autorizar ou não a instauração de processos judiciais contra os parlamentares e impedia prisões de deputados e senadores, salvo em flagrante e por um delito inafiançável. A proposta foi aprovada por uma ampla maioria de votos após um acordo entre o Centrão e a bancada de direita. Enquanto os deputados comemoravam a aprovação da insólita PEC e se preparavam para avançar sobre o projeto da anistia, a segunda etapa do acordo, o presidente do Senado fez um desabafo do outro lado do Congresso. Da tribuna, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) lamentou as obstruções impostas por aqueles que defendem temas como o impeachment de ministros do Supremo e o perdão aos condenados pelos ataques do 8 de Janeiro, dizendo que o comportamento atrapalha o andamento dos projetos de interesse do país. “Todos os dias, de manhã, de tarde e de noite, aparece alguém com alguma ideia, criando algum transtorno, agredindo e ofendendo alguém.” E concluiu: “A gente está sendo atropelado e dragado por uma mesma conversa desde a última eleição”.
Horas depois, o plenário da Câmara deu de ombros às declarações e, sob a batuta do presidente Hugo Motta (Republicanos-PB), aprovou a urgência do texto que prometia uma salvaguarda aos envolvidos nos atos golpistas. A medida é uma das principais bandeiras dos parlamentares de oposição — aqueles mesmos que, num gesto de total desrespeito às instituições, organizaram um motim no mês passado e chegaram a impedir Motta de ocupar a própria cadeira. Pressionado na Câmara, o deputado foi alvo das manifestações que levaram milhares de pessoas às ruas no domingo 21, para protestar contra a agenda do Congresso. Os gritos de “Fora, Hugo Motta” foram entoados inclusive no reduto político do paraibano. Alcolumbre, por sua vez, saiu ileso dos protestos. Na sequência, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado arquivou a PEC da Blindagem.
Eleitos em fevereiro deste ano, Motta e Alcolumbre traçaram caminhos comuns para chegar às duas das mais poderosas cadeiras da República. Ambos conversaram com o presidente Lula, pediram a bênção também ao ex-presidente Jair Bolsonaro e distribuíram promessas de que todos, independentemente da coloração partidária, seriam ouvidos em suas gestões. A habilidade em contemplar grupos e interesses tão distintos seria obtida a partir da moderação, dando fim à belicosa relação mantida entre os antecessores Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que nem sequer se falavam. Consta até que o tradicional portão interno que separa as duas residências oficiais em Brasília, mantido trancado na gestão anterior, foi reaberto.
Dando mostras da parceria, Motta e Alcolumbre derrubaram o decreto do governo que aumentava o imposto sobre operações financeiras (IOF) e, por outro lado, fizeram gestos ao Planalto após as sanções financeiras impostas pelos Estados Unidos — a política do equilíbrio. A dupla, porém, começou a desafinar em meio às pressões da ala bolsonarista no Congresso. Enquanto o comandante do Senado sempre rechaçou qualquer possibilidade de anistia, alinhado com o Palácio do Planalto, seu colega na Câmara sinalizava que algum tipo de perdão poderia ser concedido — um dos supostos compromissos que o deputado teria assumido na campanha.

Ao pagar a fatura à oposição, particularmente aos bolsonaristas, Motta também atendeu seus colegas do Centrão e embutiu a PEC da Blindagem no pacote — uma forma de agradar aos dois grupos. O texto obteve o aval de 353 deputados, mas, em meio à pressão popular, acabou rejeitado uma semana depois de aprovado na Câmara. Figuras próximas a Hugo Motta não esconderam a irritação com o desfecho. Garantem que o pacote estava devidamente negociado com o Senado. “O Davi sacaneou o Hugo. Estava tudo acordado”, diz um deputado do União Brasil. “Se o Senado não teve coragem, é outra coisa”, completa um outro aliado do presidente da Câmara. Há também a desconfiança de que o parlamentar esteja sendo alvo de uma campanha com o objetivo de fragilizá-lo. Para muitos congressistas, a autoridade de Motta vem sendo corroída rapidamente, semana após semana, a ponto de alguns detratores o chamarem de “ex-presidente da Câmara em exercício”. Motta precisa virar o jogo, pois tem projetos claros no horizonte que dependem de seu prestígio e poder político. Ele tem planos de alçar o pai, atual prefeito de Patos (PB), a uma cadeira de senador com o apoio do presidente Lula e também mira a reeleição para o comando da Câmara.
Passado o turbilhão do fim de semana, Motta retomou sua estratégia de tentar compor com todo mundo — ou quase todo mundo. A empresários, o deputado justificou que precisava tirar as “pautas tóxicas” do caminho e discutir projetos relevantes para o país, como a reforma administrativa. Num aceno aos deputados que chancelaram a PEC, defendeu a medida dizendo que ela fortalece a atividade parlamentar. Houve afagos à esquerda com a decisão de barrar a indicação do deputado Eduardo Bolsonaro como líder da minoria, o que abre caminho para sua cassação. Já num gesto ao Palácio do Planalto, prometeu pautar na próxima quarta-feira, 1º, o projeto que amplia a isenção do imposto de renda para quem ganha até 5 000 reais.
O texto é relatado por Arthur Lira, e a disputa pela paternidade dele deve gerar um novo capítulo de tensão com o Senado. A proposta foi encaminhada pelo governo à Câmara em março deste ano e aprovada por uma comissão especial em meados de julho. Depois disso, bastaria a votação em plenário, o que acabou não acontecendo. Em meio à inércia, os senadores decidiram dar andamento a um projeto com o mesmo conteúdo. A relatoria foi entregue a Renan Calheiros (MDB-AL), inimigo histórico de Lira. Num ritmo bem mais acelerado, a proposta foi aprovada pelo Senado e deve ser encaminhada à Câmara. Ainda não está definida qual versão será priorizada pelos deputados e quem vai colher os louros de uma medida tão popular na véspera de um ano eleitoral.

Virar a “pauta tóxica” não será uma missão muito simples. O Congresso continua travado pelo impasse da concessão de anistia aos envolvidos nos ataques golpistas. O deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP) foi indicado por Hugo Motta para elaborar a versão final do projeto. De antemão, ele rejeitou conceder um perdão total aos envolvidos. O objetivo agora é reduzir as penas de alguns dos crimes imputados aos condenados. Em busca de consenso, o deputado conversou com lideranças dos principais partidos, pediu conselhos ao ex-presidente Michel Temer e consultou ministros do STF. “Não dá para agradar a todos, mas, se a gente conseguir fazer esse texto que agrade à maioria, vai pacificar o Congresso, os poderes e também o Brasil”, disse ele a VEJA. Em busca de evitar novos desencontros, o deputado já se reuniu com Davi Alcolumbre e quer que os partidos entrem em um acordo com as duas Casas. O PT avisou que será contrário a qualquer medida que reduza as penas. O PL de Jair Bolsonaro insiste que só aceita anistia ampla. “Dosimetria não é competência do Congresso Nacional. O que compete ao Congresso é a anistia, e nós não vamos abrir mão dela”, diz o líder Sóstenes Cavalcante após reunião com o relator.
Disputas internas e embates partidários fazem parte do cotidiano de qualquer chefe de poder. A turbulência do momento, no entanto, impõe aos atuais ocupantes desses cargos vários desafios adicionais. Enquanto Motta luta para recuperar a autoridade, adversários querem colocar Alcolumbre na mira da CMPI que investiga o roubo das aposentadorias. Conforme VEJA mostrou em sua última edição, o homem de confiança do presidente do Senado, o advogado Paulo Boudens, recebeu 3 milhões de reais de uma das empresas investigadas no escândalo do INSS. Boudens era braço direito do senador até VEJA também revelar a existência de um esquema de rachadinhas no gabinete. O assessor assumiu a culpa, prometeu devolver o dinheiro e o caso foi encerrado. A CPMI que apura o desvio das aposentadorias já tem em mãos a documentação e promete mergulhar na relação de Boudens com o esquema. No início da semana, dois deputados de oposição apresentaram requerimentos pedindo a quebra do sigilo do ex-auxiliar do presidente do Senado e a convocação dele para prestar esclarecimentos — uma maneira de fustigar Alcolumbre, que segue em silêncio sobre o caso. Nada indica vida fácil daqui em diante para os dois maiores caciques do Congresso.
Publicado em VEJA de 25 de setembro de 2025, edição nº 2963