Jornal da Unesp | Experimento produz novo alimento híbrido combinando células de animais e vegetais cultivadas em laboratório com impressão em 3D

Jornal da Unesp | Experimento produz novo alimento híbrido combinando células de animais e vegetais cultivadas em laboratório com impressão em 3D

Evangélicos

Malena Stariolo

E se, em vez de irmos aos supermercados, à feira ou ao açougue para adquirir nossos alimentos favoritos, pudéssemos recorrer também aos laboratórios, e lá encontrássemos alimentos personalizados, concebidos para atender às nossas necessidades nutricionais e de saúde? Pode soar futurista, mas essas possibilidades já estão sendo investigadas por pesquisadores de dentro e de fora do Brasil, de olho no desafio de alimentar a crescente população humana, que, segundo estimativas da ONUdeve alcançar os 10 bilhões de habitantes ainda neste século. Um desses estudos envolveu pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade Harvard, da Universidade de Tecnologia e Design de Singapura e da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de Assis. Os resultados foram publicados em julho na revista Comunicações da natureza.

O estudo combinou técnicas de impressão 3D com a ideia de agricultura celular, um campo que estuda a produção de carne e outros produtos agrícolas a partir do cultivo de células, o que permite a produção de alimentos de origem animal sem a necessidade de criação e abate de animais.

A participante brasileira foi Camila Yamashita, que cursou graduação em engenharia biotecnológica na FCL e fez seu mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Biociências da mesma unidade. A pesquisa foi realizada ao longo do ano de 2022, quando Yamashita cursava seu período de doutorado sanduíche na Escola de Medicina de Harvard, nos Estados Unidos.

O uso de impressoras 3D é hoje bastante disseminado. Da medicina à indústria da moda, poucos foram os campos que, em algum momento, não testaram inovações na produção de produtos e materiais com essa máquina. No ramo alimentício, não foi diferente. Desde meados de 2010, pesquisadores e profissionais da gastronomia experimentam as possibilidades das impressoras 3D na produção de alimentos. A ideia, inicialmente, é relativamente simples: um purê de cenoura, misturado com uma base gelatinosa, pode ser usado como material para “imprimir” um alimento com formato e textura completamente personalizáveis.

O mérito do projeto está em unir várias iniciativas que vêm sendo estudadas de forma independente: a impressão 3D de alimentos; a produção de alimentos híbridos, que combinam ingredientes de origem animal e vegetal; e a criação de biotintas a partir do cultivo de células in vitro — ou seja, sem utilizar ingredientes prontos, como vegetais ou carnes. A junção de todas essas frentes possibilita um novo campo dentro da gastronomia, no qual o alimento pode ser produzido de forma completamente customizável e, além disso, não dependerá de campos de cultivo ou criação. “Imprimir um alimento utilizando como base um material comestível já é algo conhecido. O que nós queríamos era conseguir produzir o alimento do zero, a partir do cultivo celular”, diz Yamashita.

Nova fronteira na produção de alimentos

Ela diz que os pesquisadores imaginam um futuro no qual será possível, a partir da identificação das necessidades de suplementação de vitaminas e nutrientes de uma pessoa, produzir e imprimir alimentos com essas características. Para que esse futuro seja possível, um primeiro passo é o desenvolvimento de biotintas, que são feitas a partir de géis de polímeros e células animais ou vegetais, para serem utilizadas nas bioimpressoras.

É nesse momento que a composição do alimento pode ser definida. A biotinta consiste em um gel preparado em laboratório, a partir da combinação de células vivas, nutrientes, vitaminas e gelificantes, que podem ser dosados para atingir diferentes resultados: um gel com maior valor proteico, com mais vitamina B12 ou com menor teor de gorduras.

No estudo, o grupo desenvolveu duas biotintas que foram combinadas no momento da impressão: uma à base de células vegetais, com o uso das microalgas Chlamydomonas e Chlorella; e outra com células de músculo de frango. Para isso, outro objetivo foi conseguir cultivar as células de frango em laboratório, eliminando a necessidade de abate dos animais.

Fios de macarrão impressos utilizando biotintas com células animais e vegetais. A coloração verde ocorre por conta da presença de microalgas na composição. Crédito: Camila Yamashita.

Criando células em laboratório

A carne gerada em laboratório, a partir da agricultura celular, tem sido apresentada pela agroindústria como um recurso interessante, pela possibilidade de que o produto final apresente menos gordura, sem que haja perda de seu valor nutricional, e por demandar menos recursos ambientais em sua cadeia produtiva, apresentando um caráter mais sustentável.

Para o cultivo das células de frango, os pesquisadores utilizaram uma amostra de células da ave em um estágio inicial de desenvolvimento. Essas foram mantidas em uma cultura celular específica, para incentivar seu desenvolvimento e multiplicação. Após a proliferação, as células foram reunidas e processadas para obter a biotinta. Ao todo, o grupo cultivou cerca de 5.000.000 de células para gerar um mililitro do produto.

Outra etapa importante é a diferenciação das células. Durante seu desenvolvimento, as células podem se “transformar” em diferentes variedades, como células de músculo ou de gordura. No caso do estudo, os pesquisadores conduziram a etapa de diferenciação após a impressão do produto, porque o processo de impressão aplica estresse sobre as células e pode matar algumas delas. Assim, ao “finalizar” a produção do alimento após a impressão, o grupo pôde garantir que o produto final conteria a quantidade prevista de células musculares.

“A biotinta foi feita com as células de frango antes que elas estivessem diferenciadas. Ou seja, elas não estavam prontas para servir como alimento”, explica Yamashita. Para isso, após a impressão, o alimento voltou para a incubadora, que estava programada para simular o ambiente necessário para que as células se diferenciassem em células de músculo. Só então o produto foi considerado finalizado.

Já a biotinta vegetal foi feita à base de Chlamydomonas e Chlorelladuas microalgas unicelulares. Ambas têm se destacado como fontes atrativas de proteína e nutrientes, o que as qualifica como bons ingredientes para a produção de alimentos híbridos. “Essas algas são ricas em proteínas, aminoácidos, vitaminas, minerais e ácidos graxos ômega-3, o que as torna importantes fontes de suplementação quando pensamos em alimentos híbridos”, diz Yamashita.

Outra qualidade que as algas apresentam é sua capacidade de produzir grandes quantidades de oxigênio. Em estudos anteriores, o grupo percebeu que essa característica contribui para o desenvolvimento das células animais no processo de diferenciação. Como resultado, além de tornar o alimento mais nutritivo, a combinação das biotintas animal e vegetal também aprimora o resultado do produto final.

Alimentos impressos

Com a tinta em mãos, o passo seguinte envolveu a etapa de impressão, que é responsável por transformar o gel em um produto mais atrativo para a alimentação. Este passo se assemelha bastante à impressão 3D tradicional. O design do formato do alimento é feito a partir de um modelo 3D no computador. A seguir, as ampolas contendo as biotintas são posicionadas na impressora, que inicia o processo de impressão por meio de uma sequência de camadas alinhadas.

A grande diferença entre a impressão realizada por Yamashita e as impressões 3D convencionais é que o cabeçote da impressora foi adaptado para que fosse possível inserir as duas ampolas de biotinta, permitindo que a impressão fosse feita simultaneamente com as duas bases.

O principal teste realizado foi a impressão de fios de macarrão. Mas, com o sucesso das biotintas, o grupo também testou formatos mais desafiadores, incluindo uma coxa de frango e um donut. Yamashita destaca que o foco do estudo estava nos testes mecânicos, buscando avaliar se as biotintas conseguiam preservar a estrutura dos alimentos e se seria possível personalizar ou alterar a textura final. Os resultados foram considerados satisfatórios.

Donuts impresso com as biotintas de células animais e vegetais. O uso das algas confere a coloração verde ao alimento, que pode ser alterada com o uso de corantes artificiais ou naturais. Crédito: Camila Yamashita

Essa possibilidade de customização é especialmente interessante para pessoas que enfrentam problemas de saúde, como a disfagia — que é a dificuldade de engolir. “Na impressão 3D, conseguimos manipular a textura do que estamos imprimindo. Isso pode criar opções de alimentos nutritivos e atraentes para pessoas idosas ou com dificuldade de engolir”, diz Yamashita.

Produção em disputa

Para que os alimentos híbridos possam um dia ocupar espaço em nossas mesas, ainda há vários obstáculos a serem superados. O mais evidente talvez seja os altos custos necessários para a etapa de cultivo das células animais, o que termina por inibir os esforço para escalar a produção. Uma esfera diferente de problemas diz respeito ao processo regulatório da fabricação de carnes cultivadas, algo que na maior parte dos países sequer foi iniciado, ou está ainda nos estágios iniciais na maior parte dos países. Até o momento, apenas quatro nações aprovaram a venda deste produto: Singapura, desde 2020; Estados Unidos, desde 2023; Israel, desde 2024; e Austrália, a partir de 2025.

Ainda assim, o setor vem recebendo grandes investimentos. Segundo relatório do Good Food Institute (GFI), em 2024 foram $139 milhões de dólares investidos na indústria de carne e frutos do mar cultivados. Em 2023, a gigante JBS iniciou a construção, em Santa Catarina, do primeiro centro de inovação e pesquisa para o desenvolvimento de carne cultivada em laboratório do Brasil, chamado de ‘JBS Biotech Innovation Center’, num investimento estimado em US$ 22 milhões. A empresa também patrocina pesquisas sobre esse tema na Espanha, e apoia o trabalho de start-ups no Brasil.

Por outro lado, outros países vêm se posicionando de forma contrária. A Itália saiu na frente em 2023 ao vedar diretamente a produção e comercialização de carne de laboratório, sob o pretexto de defender a comunidade nacional de produtores de agricultores e a cultura gastronômica do país. Em 2024, o Alabama e a Flórida, nos Estados Unidos, também aprovaram leis para tornar ilegal a venda ou distribuição de carne cultivada no estado, alegando defesa à classe de pecuarista. No Brasil, um Projeto de Lei, protocolado na Câmara de Deputados em 2023quis proibir a pesquisa, a venda e o consumo de carne de laboratório no Brasil.

Apesar da resistência, Yamashita acredita que os grandes investimentos que o setor tem recebido apontam para um futuro em que a tecnologia irá se popularizar, expandindo nossas ideias sobre alimentação.

Imagem acima: coxa de frango impressa usando biotintas de origem animal e vegetal. Crédito: Camila Yamashita

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