As escolas municipais estão em cinza

As escolas municipais estão em cinza

Noticias Gerais

Apagaram tudo

Pintaram tudo de cinza

A palavra no muro

Ficou coberta de tinta

Apagaram tudo

Pintaram tudo de cinza

Só ficou no muro

Tristeza e tinta fresca(…)

(Marisa Monte / Arnaldo Antunes)

A epígrafe que inicia este desabafo não poderia ter outro nome “Gentileza”. Atitude que tem faltado aos governantes que insistem em apagar a história com atos  autoritários e onipotentes. Trata-se de uma música, desabafo de Marisa Monte e Arnaldo Antunes, pelo ato de um governo que decidiu pintar de cinza todos os viadutos da cidade cobrindo as palavras coloridas de Gentileza.

Gentileza, nomeado como Profeta Gentileza foi um pregador urbano que se tornou conhecido por espalhar pela cidade do Rio de Janeiro palavras de amor, bondade e respeito. Em sua história de vida no campo aprendeu a amansar burros e na sua história na cidade dizia que seria “(…)amansador dos burros homens da cidade que não tinham esclarecimento.”.

A música em questão, ecoa como lamento, mas também como denúncia, poderia reverberar nas escolas municipais de Porto Alegre, nas diferentes comunidades que têm tido suas artes e autorias urbanas pintadas de cinza. Nossas escolas vêm perdendo sua identidade, e uma escola precisa dialogar com a comunidade no qual está inserida, valorizar a cultura e a vida dos estudantes, ser espaço onde os estudantes se sintam sujeitos do processo educativo.

Por determinação de alguma autoridade governamental o padrão para as escolas municipais agora será o cinza. A ordem para padronizar os prédios escolares com a cor cinza é mais do que uma escolha estética — é um projeto simbólico de apagamento.

Um cinza que busca cobrir histórias representadas em artes, para quem não conhece a história da rede municipal é um simples ato de “apagar tudo”, mas para quem vive o cotidiano da escola sabe que a cor das paredes das escolas são representações de autorias, trazer cores para as paredes das escolas é muito mais que um ato de pintar é uma assinatura, é tomar posse de um espaço de expressão, sendo assim, as cores não podem ser vistas apenas como  decoração: são memória viva. São histórias contadas por pincéis coletivos, projetos pedagógicos que viraram murais, manifestações de pertencimento, celebrações da comunidade. Há pinturas nas paredes e muros das escolas municipais que são representações de projetos e marcas de sabedoria que foram perpetuadas em gestos e cores. Para muitas escolas ter seus muros coloridos e com grafites com a autoria dos estudantes e comunidade é um ato de celebração. Apagar essas cores não é apenas repintar muros e paredes — é apagar vozes, esconder processos de criação, neutralizar a potência do coletivo.

O que pode significar pintar tudo de cinza? Pintar tudo de cinza, em nome de um suposto padrão, representa o desejo de silenciar narrativas diversas. Cada cor carrega um afeto, cada traço tem um autor. Ao cobrir tudo com a frieza do cinza, tenta-se cobrir também as emoções, os sonhos, as identidades.

Na busca do significado da cor cinza, facilmente encontraremos a representação da neutralidade. Pintar todos os prédios das escolas municipais de Porto Alegre de cinza, seria a busca de uma neutralidade, de um equilíbrio forjado.  E talvez esse seja o retrato mais fiel da tentativa de uma forma de fazer gestão: disfarçar o controle como equilíbrio, impor silêncio como neutralidade.

Porto Alegre segue um caminho da contradição, na contramão da pluralidade, enquanto o mundo luta pela diversidade, inclusão, respeito às culturas locais e escolares, , por um arco-íris de emoções, nossos prédios escolares seguem o cinza da neutralidade, como os dias cinzas de inverno gaúcho; nossas escolas veem sua identidade sendo apagada — muro por muro, traço por traço.

Neste momento, o coração aperta, pois quem está na escola deve lembrar da alegria de cada dia de colorir a escola, do respeito às autorias, da alegria das crianças ao ver sua escola colorida, seu desenho na parede. Parece que Gentileza, espalhado em forças e resistência, ainda teria muito a dizer. Sua filosofia de vida na simplicidade está fazendo falta em Porto Alegre “Para amansar os burros homens da cidade sem esclarecimento”

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) reconhece a arte como uma das áreas do conhecimento essenciais para a formação humana integral. Apagar manifestações artísticas presentes nos muros escolares não é apenas uma decisão administrativa, mas também uma interferência direta em processos pedagógicos que envolvem criatividade, autoria, crítica social e sensibilização estética. Resgatar a arte na escola é, portanto, uma ação educativa e política.

Recorremos aqui a Teoria da Subjetividade, desenvolvida por Fernando González Rey (1997, 2005) onde, compreendemos que os sujeitos não são passivos diante do mundo, mas produzem sentidos subjetivos a partir de suas experiências concretas em contextos sociais, históricos e culturais. A escola, nesse sentido, é um dos espaços mais potentes para essa produção subjetiva, pois ali se entrelaçam histórias, afetos, desejos e sentidos compartilhados. Apagar as cores dos muros escolares é também tentar controlar esses sentidos, restringindo a produção subjetiva à lógica da homogeneização e da neutralidade forjada.

As escolas públicas não são apenas lugares de transmissão de conteúdos, mas espaços de produção de sentidos, onde a subjetividade de estudantes e educadores se constitui em meio às relações e práticas vividas (Gonzalez Rey, 2005). Ao apagar os traços autorais presentes nos muros escolares, nega-se a função mediadora do espaço na constituição subjetiva dos sujeitos, restringindo a escola a um espaço normativo e silenciador.

Segundo González Rey, os espaços sociais atuam como configurações subjetivas, ou seja, contextos simbólicos e relacionais nos quais os sujeitos constroem e ressignificam suas experiências. O ambiente escolar colorido, com grafites feitos por estudantes e projetos desenvolvidos com a comunidade, é um desses contextos mediadores, nos quais a subjetividade se constitui em diálogo com a expressão, a participação e o reconhecimento. Ao transformar esses espaços em estruturas cinzentas, desprovidas de vida, corre-se o risco de produzir subjetividades silenciadas, desmotivadas e alienadas do processo educativo.

Freire (1996) já alertava para os perigos de uma educação que silencia e não dialoga com a realidade concreta dos educandos. Impor uma única estética – o cinza – é desconsiderar o saber que emerge da experiência escolar e comunitária, negando o direito à expressão de sujeitos historicamente invisibilizados.

O que se apaga quando se pinta uma escola de cinza? Apaga-se a alegria das crianças ao reconhecer seus desenhos na parede.  Apaga-se a liberdade dos corpos em movimento.  Apaga-se o grito criativo dos estudantes que ousaram ocupar o espaço público com cor e pensamento. Apaga-se o desejo de destacar as diferenças, de afirmar as singularidades, de viver o pertencimento. Apaga-se a identidade e pertencimento da escola

Em cada comunidade, a escola se destacava em meio a casas e prédios, ao longe enxergava-se um colorido que falava aos moradores e visitantes “é ali a escola”, com um recado e uma mensagem: território de sonhos e possibilidades. Porque, como nos diz Rubem Alves, “há escolas que são asas” e asas são multicores. Escolas que são asas enxergam sujeitos, singularidades, expressões, escolas que são gaiolas aprisionam, normatizam, uniformiza.

O cinza que agora cobre as paredes tenta cobrir também os sentidos da escola como lugar de vida, expressão e construção coletiva. Mas Gentileza, ainda que encoberto, continua sussurrando em cada traço escondido: “O amor é essencial”. Porque pintar de cinza é fácil. Difícil é devolver o brilho do que foi apagado. E, como nos ensina a própria arte, nenhuma tinta é forte o bastante para apagar uma memória viva. Que sejamos cores em meio às cinzas.

*Coletivo de Educadores que trabalham pela Inclusão Escolar.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha do editorial do jornal Brasil de Fato.

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